Por Luiz Malheiros, Coordenador e Editor de Conteúdo da Supera Comunicação
A pandemia da COVID-19, doença causada pelo novo coronavírus, sacudiu o mundo todo a partir do fim de 2019, e as empresas não passaram imunes por ela. Para fora, diversas ações de solidariedade, como doações de alimentos e equipamentos médicos. Há, porém, outra esfera que deve ser analisada: a comunicação interna entre as companhias e seus empregados nesse período.
Embora a recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS) e de outros órgãos especializados seja ainda o distanciamento social, muitas companhias mantiveram suas atividades, fazendo adaptações sanitárias adequadas, por serem vistas e entendidas como essenciais. Desse modo, fez-se necessário estabelecer uma narrativa que envolvesse o empregado e o engajasse a sair de casa e até a produzir mais, mesmo em meio a uma pandemia. Dessas, uma se sobressai: a do herói.
Antes, porém, de apresentá-la, vale discorrer um pouco sobre quem é a figura do empregado e a sociedade na qual ele está inserido. Para Lipovetsky (2007), o período atual da humanidade é marcado pela ansiedade, pela frustração e pela decepção. “A sociedade hipermoderna se caracteriza pela multiplicação e pela alta incidência da experiência frustrante, tanto no âmbito público quanto no âmbito privado. Isso é tão verdadeiro que as pesquisas de opinião estão se especializando em radiografar os diversos níveis de desapontamento em nosso convívio social (p. 6)”.
Um exemplo disso é o Edelman Trust Barometer, pesquisa global realizada pela empresa de pesquisa Edelman Intelligence há duas décadas. Neste ano, por conta da pandemia, houve duas edições do estudo: a primeira, divulgada em 6 de abril, e a segunda, que veio um mês depois e trouxe complementos relacionados à COVID-19. Na versão inicial brasileira, para 80% dos entrevistados, a figura do Meu Empregador era mais forte do que qualquer uma das instituições (Mídia, Governo, ONGs e Empresas). Aliás, entre essas quatro, as Empresas apareciam como a mais confiável com 64%, seguida por ONGs (59%), Mídia (44%) e Governo (37%). Comparando com o estudo de 2019, houve um acréscimo de 6%, saltando de 58% para os já citados 64%.
A versão coletada em abril, ou seja, no auge da pandemia na Europa, traz reviravoltas em cima desses números. Se até então as companhias desfrutavam de uma posição de alta confiança, a COVID-19 mudou isso. A instituição Governo cresceu 11 pontos, e, desse modo, chegou a 65%, tornando-se então a mais confiável na visão global. De acordo com o estudo, “o público está confiando nos governos para protegê-los de uma forma não vista desde a Segunda Guerra Mundial”. Por outro lado, a figura das Empresas foi colocada em xeque. Dois números comprovam isso: só 43% dos entrevistados acreditam que elas estejam protegendo seus empregados de forma satisfatória, enquanto 38% acredita que as empresas vão bem ou muito bem em colocar pessoas antes dos lucros.
A transferência da confiança das pessoas do Governo para as Empresas representa um processo histórico, conforme descreve Cappellano (2015). Segundo ela, o processo de individualização promovido pela modernidade, seja no convívio social ou no trabalho, colocou o ser humano em um tempo de incertezas e inseguranças, alterando, assim, o modelo de identificação ideal que organizava indivíduos e grupos. Ela detalha: “Falido e desacreditado, o Estado tornou-se incapaz de estabelecer políticas que garantissem o emprego e a seguridade social. A desafiá-lo em seu papel como ente de proteção do cidadão emerge a empresa moderna. É ela que gera empregos, riqueza, arrecada impostos e dá benefícios que asseguram as necessidades sociais primárias (saúde, educação, alimentação etc.), conquistando representatividade no cenário econômico, social e político das Nações (p. 34)”.
Dado o cenário social em que está colocado, vale olhar mais atentamente para a figura do indivíduo-empregado a partir de agora. No podcast “Zygmunt Bauman e a Pós-modernidade”, publicado em 17 de março de 2017 pelo Instituto CPFL, Luiz Felipe Pondé analisa: “A mulher pós-moderna e o homem pós-moderno descobriram que você tem que se inventar […]. O que a gente descobre é que a maior parte dos pós-modernos não aguenta esse negócio de produzir valor, e aí ele fica procurando valor”. Ainda segundo o filósofo, a dificuldade do ser humano atual em se manter num mesmo conceito que seja mais demorado o leva a buscar diferentes tipos de valores constantemente. Por fim, ele não mais produz valor, mas alterna entre variadas modalidades do que é oferecido a ele como valoroso. O estudioso continua: “O valor, para funcionar, parece que tem que ter alguma característica que, para você, fique claro que não foi você que inventou porque parece que, no fundo, no fundo, aquilo que você inventa é descartável”.
O indivíduo-empregado que busca valor onde pode achar encontra uma série de filosofias, missões e visões no mundo das empresas. Esses conceitos são repassados constantemente por meio de campanhas e canais de comunicação interna ou em ações de âmbito externo, como páginas no LinkedIn, em que tais ideais se tornam constantes. A partir disso, promove-se o engajamento de quem já integra o quadro de funcionários, mas faz brilhar os olhos de quem (ainda) está fora. Há um investimento de dinheiro considerável nesse sentido: a sexta edição do levantamento “A Comunicação Interna nas Organizações no Brasil”, organizado pela Associação Brasileira de Comunicação Empresarial (Aberje) e lançado em dezembro de 2019, mostra que as empresas participantes aportam cerca de R$ 712 milhões em comunicação corporativa por ano.
Desde fevereiro, quando se confirmou o primeiro caso da COVID-19 no Brasil, as empresas passaram a adotar uma série de mudanças. Elas, é claro, chegaram também à comunicação, exatamente pelo ponto citado no começo do texto: por terem negócios essenciais, suas atividades não poderiam ser interrompidas. Mas, como adaptar as narrativas para envolver os indivíduos-empregados que, mesmo podendo ser infectados, precisam sair para trabalhar? Desse problema, surge o conceito do heroísmo, como analisaremos em dois casos práticos.
O Grupo 3corações nasceu em 1959, em São Miguel, no Rio Grande do Norte. Da pequena comercialização feita por João Alves Lima no século passado, surgiu um grande conglomerado que conta com mais de 18 marcas de café torrado e moído e possui atividades em outros segmentos. Em março, em sua página no LinkedIn, a organização lançou a campanha Nossos Heróis Não Usam Capa, cujo site pode ser acessado aqui.
Além do sentido oferecido já no título, a ação traz o reconhecimento e o agradecimento das famílias de alguns empregados que continuam a trabalhar, focando principalmente em filhos e filhas. As mensagens de carinho expostas comprovam e recompensam o esforço dos indivíduos-empregados como heróis que lutam na linha de frente de uma guerra, ideia destacada também pelo texto introdutório: “[…] parte de nossas equipes segue forte no trabalho nas nossas Unidades e no mercado. Tudo para garantir que nossa qualidade, sabores e energia ajudem o povo brasileiro a lutar essa batalha que é de todos nós”.
A narrativa heroica do Grupo 3corações encontra eco e é impulsionada pelos próprios valores corporativos que a empresa adota e ressalta; entre eles, destacam-se Perseverança com Agilidade e Paixão. O heroísmo que se espera de quem atua na companhia tem como motores esses itens, ou seja, durante a pandemia, em tese, o funcionário do Grupo 3corações atua desse modo para cumprir o objetivo, a missão da empresa: “Proporcionar experiências prazerosas que promovam alegria e bem-estar, criando laços duradouros e gerando valor para todos”. O papel que lhe é dado é o de um herói sem capa e apaixonado, perseverando de forma ágil para gerar prazer, alegria e bem-estar por meio dos produtos da marca.
Outro exemplo pode ser observado na Gol, companhia aérea que opera desde 2001 no Brasil. No primeiro trimestre de 2019, ela realizou 715 voos diários e, em fevereiro do mesmo ano, empregava cerca de 15 mil pessoas. Já em março de 2020, a empresa publicou um vídeo no qual um grupo de empregados reconhece os colegas que continuam trabalhando fora de casa – com papéis ou materiais digitais, escrevem: “Obrigado por estarem na operação”. As mensagens são acompanhadas por uma hashtag #TimeDeÁguias, composição que integra um dos valores da empresa. Além disso, ela considera como atributos da sua cultura organizacional Segurança e Servir, entre outros. Aqui, o indivíduo-empregado ganha um heroísmo ligado ao reconhecimento coletivo do seu grupo, o Time de Águias, pelo trabalho executado, servindo e garantindo a segurança da visão da Gol: “Ser a melhor companhia aérea para viajar, trabalhar e investir”.
Por si só, o oferecimento de sentido constante por meio de comunicações já dá aos empregados, dentro do contexto apresentado, uma missão de vida, algo maior em que podem acreditar e lutar. Tudo isso é fornecido pela entidade que garante também o seu bem-estar em diversas esferas, conforme apontado no começo deste texto. A chegada da COVID-19 ofereceu um novo papel aos funcionários dentro dessa trama: o protagonista que se sacrifica em prol de uma missão, ao mesmo tempo em que guarda a vida de outros.
Seja em terra ou no ar, com ou sem capa, tais pessoas estão expostas a um inimigo que desafia toda a humanidade. Resta saber como será o final dessa história e entender de que modo as companhias se portarão frente a um desfecho muito possível: a morte de alguns desses heróis.
Referências bibliográficas
LIPOVETSKY, G. A sociedade da decepção. Barueri: Manole, 2007.
CAPPELLANO, T. A incoerência da cultura organizacional sólida para empregados líquidos. In: CARRAMENHA B., CAPPELLANO, T. MANSI, V. (Org.). Ensaios sobre Comunicação com Empregados – Múltiplas Abordagens para Desafios Complexos. Jundiaí: Editora In House, 2015.
Artigo publicado originalmente no off-lattes, canal de divulgação dos grupos de pesquisa do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP-LABÔ, em 2020.